A licitude da terceirização não se preza a legitimar a perfídia da “pejotização” por vezes dissimulada na relação jurídica de natureza civil com o empreendedor individual.
1. INTRODUÇÃO.
O presente artigo tem por escopo analisar o fenômeno denominado de “pejotização” a partir da figura do Micro Empreendedor Individual. Com o advento da Lei 13.467/2017, que possibilitou a terceirização da atividade-fim da empresa tomadora de serviços, fez-se necessária reflexão sobre o disposto na súmula 331 do TST, sobretudo em razão do julgamento da ADPF nº 324 pelo STF. Além disso, o tema da terceirização tornou-se ainda mais importante, na medida em que a mesma lei introduziu o art. 442-B da CLT, trazendo novo delineamento legal acerca do “autônomo”. Ocorre, todavia, que tais inovações legais não permitem mascarar relações em que se fazem presentes os requisitos do vínculo de emprego. Isso porque no direito do trabalho permanecem seus princípios estruturantes, que formam o núcleo jus trabalhista basilar, com potencial vinculante.
O objetivo deste estudo, portanto, é rememorara essência do micro empreendedor individual – MEI à luz do fenômeno da “pejotização”, analisando se as inovações legais quanto à terceirização de serviços autorizam o desvirtuamento de relação de emprego.
2. RELAÇÃO DE EMPREGO, TRABALHADOR AUTÔNOMO, TERCEIRIZAÇÃO DE SERVIÇOS E FENÔMENO DA PEJOTIZAÇÃO.
Em que pese a Lei 13.429/2017 e, posteriormente, a Lei 13.467/2017 (essa conhecida como a “reforma trabalhista”) inegavelmente tenha representado flexibilização no âmbito do direito do trabalho, não alteraram o conceito clássico de “empregado”, tampouco os requisitos caracterizadores da relação de emprego. Nos termos do art. 3º da CLT, extrai-se os elementos do vínculo empregatício, cuja existência deve ser concomitante, a saber: a) pessoalidade; b) onerosidade; c) não-eventualidade e d) subordinação.
Esse âmago fático-jurídico da relação de emprego, uma vez presentes tais elementos na relação jurídica, traz como consequência a existência do vínculo de emprego com todos os seus desdobramentos e consectários, sob a égide dos direitos sociais sacramentados na Carta Magna e protegidos pelo manto dos institutos correlatos constantes da Consolidação das Leis do Trabalho.
Cumpre referir que nem a reforma trabalhista, tampouco a decisão proferida pelo STF quando do julgamento sobre terceirização na ADPF n. 324 pelo STF, que ratificou a possibilidade da terceirização irrestrita nas empresas, inclusive na sua atividade-fim (em sentido contrário ao que até então estava sedimentado na súmula 331 do TST), modificaram estrutura clássica conceitual de “empregado”.
Embora a nova legislação tenha o propósito de garantir a estratégia de negócio e a essencial para a competitividade das empresas, fazendo a conjugação dos princípios da livre iniciativa, da livre concorrência e da não intervenção estatal na liberdade jurídica de contratar, este novo regramento não altera o conceito matriz do que se tem por “relação de emprego”.
Nos termos do art. 966 da Lei 10.406/2002, considera-se empresário individual quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para produção de bens e serviços. Por sua vez a lei Complementar 128/2008 criou a figura do micro empreendedor individual – MEI, com vigência a partir de 01 de julho de 2009, disciplinando a necessidade da existência de um teto para receita bruta anual, a opção pelo Simples Nacional, e que não esteja impedido de optar pela sistemática prevista no art. 18-A da LC 128/2008. Além disso, exceto em relação aos serviços de pintura, hidráulica, eletricidade, alvenaria, carpintaria, manutenção e reparo de veículos, ao MEI é vedado a prestação de serviços através de cessão ou locação de mão de obra. Ademais, referida lei veda ao MEI guardar, cumulativamente, com o contratante do serviço, relação de pessoalidade, subordinação e habitualidade,sob pena de exclusão do Simples Nacional. Por conseguinte, por meio de uma interpretação sistemática, presentes tais requisitos, estaremos diante de um vínculo de emprego e não diante de um empresário individual.
Por sua vez, a e solução n. 140/2018 da CGSN, reproduzindo literalmente art. 31, § 3º,da Lei 8.212.91, conceitua cessão ou locação de mão de obra como a colocação à disposição da empresa contratante, em suas dependências ou nas de terceiros, de trabalhadores, inclusive o MEI, para realização de serviços contínuos, relacionados ou não à sua atividade fim, independentemente da sua natureza e da forma de contratação.
Referia resolução, pontua que, as dependências de terceiros são as indicadas pela empresa contratante que não integrem essa e que não pertençam à contratada. E, por derradeiro, define que serviços contínuos, vedados à execução pelo MEI como regra geral, são os que constituem necessidade permanente pela contratante, com repetição periódica ou sistematicamente, ligadas ou não à atividade fim, ainda que realizada de modo intermitente ou por trabalhadores contratados sob diferentes vínculos.
O artigo 114 da Resolução supra citada traz, ainda, a previsão da consequência em eventual desvirtuamento do instituto jurídico MEI, advertindo que na hipótese de o MEI prestar serviço como empregado ou identificados na contratação os elementos configurantes da relação de emprego, a contratante ficará sujeita as obrigações decorrentes, inclusive tributárias e previdenciárias. E como continuação de análise dos riscos presentes em eventual dissimulação nas hipóteses acima mencionada, poderá haver aplicações de multas administrativas pelo fisco. Em restando configurado referido delito, praticado mediante fraude, ocorrendo frustração do direito assegurado pela legislação trabalhista, haverá a configuração do tipo penal previsto no art. 203 do Código Penal Brasileiro.
Isso posto, diante da sistemática legal acima traçada, é imperiosa a observância dos princípios norteadores do direito do trabalho, em especial,o Princípio da Primazia da Realidade e o Princípio da Indisponibilidade de Direitos pelo empregado.O primeiro princípio elencado, também chamado de Princípio do contrato-realidade, tutela a verdade praticada e autoriza que o conteúdo do contrato se sobreponha à eventual forma. Este princípio chancela, até mesmo, a descaracterização de uma pactuada relação civil de prestação de serviço, se no plano fático houver a coexistência dos elementos fático-jurídicos da relação de emprego. Busca, portanto,a verdade real que poderá se sobrepor a realidade formal. O Princípio da Indisponibilidade de Direitos, por sua vez, guarnece o Princípio da Imperatividade das Normas Trabalhistas, no sentido de que as regras jus trabalhistas não podem ter sua regência contratual afastada por expressão volitiva dos envolvidos, sendo um instrumento assecuratório das garantias fundamentais do trabalhador. Nesta vertente, os direitos trabalhistas possuem uma indisponibilidade nata, traduzindo a inviabilidade do empregado de despojar por sua manifestação de vontade, das proteções garantidas pela ordem jurídica.
Logo, os Princípios são colocados como grandes fontes normativas cuja função precípua é informar, integrar e interpretara compreensão do Direito para nortear a relação de emprego. Dessa maneira, o núcleo duro da caracterização da relação de emprego não foi alterado pela reforma trabalhista.
3 CONCLUSÃO.
Não há que se confundir, nem há espaço para a interpretação de que “flexibilização trabalhista”, “terceirização de atividades fins e meio”, “licitude de trabalho autônomo” com a perniciosa “pejotização”, travestida de Micro Empreendedor Individual.
Nesta vertente, é oportuno trazer à baila o Princípio da Primazia da Realidade que pulsa na seara trabalhista e em casos em que o vínculo de emprego possa estar mascarado de MEI, a verdade real preponderará sobre a realidade aparente de MEI. Consequentemente, a relação de contratação de serviço será suplantada pelos efeitos e consequências do instituto relação de emprego.
Justamente para combater a fraude em relação ao desvirtuamento da relação de emprego, o art. 9º. da CLT determina que serão nulos de pleno direito os artifícios utilizados para desvirtuar, impedir ou fraudar os preceitos celetistas. Logo, referido preceito dará supedâneo para desfazer essa falsa premissa de que pela presença de uma pessoa jurídica como MEI, estaria artificialmente blindada pela “pejotização”.
Ainda, na hipótese de desvirtuamento da relação de emprego por miúda roupagem de terceirização na figura do MEI (unipessoal) ou da “pejotização”, as consequências repercutirão tanto na esfera trabalhista, quanto na fiscal e previdenciária, especialmente para o contratante. Isso porque os fraudadores ficarão sujeitos às multas administrativas aplicáveis pelo fisco. Ademais, na hipótese de se tratar direitos indisponíveis, mesmo que individuais, tendo como pano de fundo, lesão ou ameaça a direito difuso, coletivo ou individual homogêneo decorrente da relação de trabalho, será o Ministério Público do Trabalho legítimo para atuar e, inclusive, diante dos requisitos ensejadores, propor ação civil pública, como mecanismo de proteção dos direitos sociais constitucionalmente garantidos. Além disso, é possível que haja configuração do crime previsto no art. 203, do Código Penal, integrante do capítulo dos “Crimes contra organização do trabalho”, quando se estiver diante da frustração de direito trabalhista ocorra por meio de fraude ou violência.
Portanto, o que norteará os efeitos da flexibilização nas hipóteses de terceirização, será a verdade material cuja essência é a prevalência do conteúdo sobre a forma, que autoriza a desconsiderar os atos e negócios jurídicos, afim de que seja aplicada a “finalidade da lei” sobre os fatos efetivamente ocorridos.